terça-feira, 25 de agosto de 2015

No Chade, brasileiro descreve sua experiência no auxílio a mais de 400 mil refugiados

Após uma sequência de tensões políticas e guerras civis, o Chade finalmente parece desfrutar da paz. No país há quatro meses, o brasileiro Bernardo dos Santos, do ACNUR, conta os impactos dos conflitos nos países vizinhos à estabilidade da nação e como as ofensivas do Boko Haram intensificaram a chegada de refugiados ao país.
O brasileiro Bernardo dos Santos distribui kits de ajuda emergencial para pessoas deslocadas pelo Boko Haram e que se encontram no Lago Chade. Foto: ACNUR Chade
O brasileiro Bernardo dos Santos distribui kits de ajuda emergencial para pessoas deslocadas pelo Boko Haram. que se encontram no Lago Chade. Foto: ACNUR Chade
Ao leste, o Sudão. Ao norte, a Líbia. Ao sul, a República Centro-Africana. E no sudeste, a Nigéria. No meio de todas essas crises se encontra o Chade, um país sem acesso ao mar e considerado um dos menos desenvolvidos do mundo. Diferente de seus vizinhos, desde 2008 o país vive um período de harmonia, marcado por forte crescimento econômico, graças à exploração de petróleo.
Em menos de uma década, a nação se reinventou. Desde sua independência, em 11 de agosto de 1960, viveu uma sucessão de guerras civis e disputas de poder inter-religiosas. Hoje, no entanto, passou a representar um porto-seguro para 452.897 refugiados da região, segundo os números oficiais do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR). Quem conta é o brasileiro Bernardo dos Santos, que há quatro meses trabalha no país ajudando a dar visibilidade a esta causa.
Na área de relações externas do ACNUR no Chade, Bernardo traduz em palavras o trabalho árduo realizado em campo com o objetivo de angariar apoio político e financeiro para as operações humanitárias. Em seu dia a dia reúne dados e especificações técnicas para convertê-los em “uma linguagem facilmente compreensível para o público em geral e para as autoridades engajadas”, explica.
Formado em ciência política na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Bernardo conta que trabalhar a favor da paz, da reconstrução pós-conflito, dos direitos humanos e do direito humanitário foram as principais motivações que o levaram a navegar neste rumo. Após passar por Timor Leste e República Democrática do Congo com a ONU, Bernardo hoje vive na capital chadiana de N’Djamena, onde diariamente lida com a realidade daqueles que, para conservar a vida, abandonaram todo no Sudão, República Centro-Africana e Nigéria.
Primeira missão à zona de conflito
Em sua primeira viagem para conhecer a realidade dos deslocados, Bernardo visitou uma das zonas mais perigosas do país, onde, no campo de refugiados de Dar es Salam, homens, mulheres e crianças tentam recomeçar. Nas margens do Lago Chade, desde 2013 esta área transformou-se em porta de entrada para um fluxo cada vez mais constante de refugiados que fogem a violência imposta à região pelo grupo extremista Boko Haram.
Segundo Bernardo, o número estimado de refugiados da Nigéria, Níger e Camarões desde 2013 nesta localidade é de mais de 14 mil pessoas.
“Deste total, o ACNUR acolhe 7.139 em uma área chamada de Dar es Salam”, sublinhou Bernardo, explicando que o restante dessa população prefere viver fora do campo para continuar suas atividades de pastoreio e pesca. “A todos, o ACNUR oferece apoio material e alimentar irrestrito”, complementou.
As condições de vida inóspitas e escassos recursos sensibilizaram o brasileiro, que destacou a resiliência dos novos habitantes dessas terras.
“A característica mais marcante dessa área é definitivamente o Sahel, última faixa de parca vegetação antes do deserto do Saara. A temperatura média é de 42 graus à sombra. A vegetação não é abundante, uma vez que a flora é de esparsos arbustos baixos e poucas folhas”, descreveu. “Mesmo sabendo que as populações que lá se refugiam são em sua maioria nômades e acostumadas a lidar com essas condições, não é fácil vê-las vivendo em abrigos temporários, alheias aos seus meios de sobrevivência, em grande parte traumatizadas pelo conflito que as fizeram fugir e com poucas perspectivas de retorno às suas antigas vidas.”
Confiança na paz
Nesta região, o exército do Chade empreendeu ofensivas recentemente contra o Boko Haram em um esforço regional para extinguir o grupo extremista, que tem deixado no país um rastro brutal de ataques. Em junho, as hostilidades chegaram à capital N’Djamena, que sofreu uma série de ataques que deixaram mais de 50 mortos e 100 feridos.
“Não é ainda possível avaliar se a ofensiva contra o Boko Haram na região do Lago Chade terá sucesso. Os elementos do Boko Haram são em grande parte do grupo étnico Boudouma, nativos da área, que é hoje teatro de operações militares e possuem profundo conhecimento do terreno onde lutam”, descreveu Bernardo.
Apesar do cenário conturbado, há esperança da população local no processo de estabilidade e paz dentro do país, pontuou Bernardo.
“Há equilíbrio de interesses dentro das elites nacionais e a população, ainda traumatizada com o passado recente e tendo como referência três países vizinhos ainda em crise. Elas estão satisfeitas com a sensação de paz e estabilidade”, disse. “A presença do Boko Haram na região do Lago Chade não parece colocar em questão a capacidade do governo de proteger o país e os métodos radicais e indiscriminados deste grupo não criam sensação de conflito inter-religioso”, concluiu.
Ele lembrou que o país protege refugiados centro-africanos e sudaneses há mais de dez anos, fazendo com que a necessidade destas populações tenha se convertido de “emergencial para cotidiana”. Desde 2012 o governo lidera iniciativas para torná-los mais autossuficientes e integrados à sociedade chadiana, citou Bernardo, que destacou o compromisso do país para não deixar que os campos de refugiados se transformem em uma solução permanente.
“O programa oferece treinamento profissional em áreas como carpintaria, metalurgia, mecânica e costura, assim como em culturas agrícolas, para que estas populações possam aos poucos tornarem-se independentes de ajuda humanitária”, contou. “O governo do Chade não mede esforços para ajudar estas populações e autoriza o uso de terrenos aráveis para plantio e integra as escolas e os centros de formação profissional para refugiados em seu sistema nacional.”

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